Danielle Spada
Como todo bom carioca, posso
ter nascido em qualquer parte. Nascida dois terços no Rio e outro terço em
Minas, Ceará, Bahia, Espírito Santo e São Paulo como já dizia Millôr Fernandes.
Sou uma mistura tão rica e tão livre que por mais que me prendam a vida ainda é
leve e colorida porque faço parte desse jeito carioca de ser.
Sabemos que tristezas não pagam dívidas e que
a vida deve ser vivida aqui e agora. Carioca é um estado de espírito, é uma filosofia
de vida. Pra nós tudo acaba dando certo. Com jeitinho descobrimos um “macete” e
improvisamos. Sempre chegamos lá, porque Deus é brasileiro — e sendo assim, muito
possivelmente carioca, como coloca Fernando Sabino.
Gostamos do calor, não só do sol das praias, mas do
calor humano que nos faz sermos amigos de infância apenas num segundo encontro.
Nossas relações são pessoais, basta ver o cumprimento de conhecidos na rua. Uma
verdadeira festa, agarrões, tapas nas costas, gritinhos, dependendo da
intimidade, até pegar no colo ‘tá valendo’. Os encontros são sempre imprevistos ‘a gente se vê por ai’, ‘quando puder eu apareço’. Os
compromissos de hora marcada são mera formalidade de boa educação, da boca para
fora porque na verdade nos encontramos em qualquer lugar sem marcar e sempre ‘rola’
um bate-papo.
‘Olha só’...,
basta
abrir a boca pra começar a conversa, o tal bate-papo, que o carioca pode ser
facilmente identificado. Ao contrário
do que muitos pensam começar o assunto com ‘olha só’ não é ser ‘marrento’ é apenas um jeito de falar
todo nosso. Quando usamos ‘a gente’, [forma
popular de se referir a primeira pessoa do plural: nós], não é porque não sabemos, mas porque se refere à gente, muita
gente. Tanta gente que não se sabe ao certo quantos é, e mesmo assim ‘sempre
cabe mais um’, ‘a casa é nossa’, ‘tamo junto e misturado’. Podemos ainda
analisar a palavra agente, vemos que
ela se refere ao que age, que exerce alguma ação; que produz algum efeito. Deve
ser daí que tiramos ‘a gente’, porque
estamos sempre em movimento. Nos mexemos o tempo todo pelas ruas, praias, sem
falar nos corpos embalados pela música, pelo samba, pelo ‘choro’ . Tudo isso tem relação de estar com o outro, de estar com
gente, de falar com gente.
E por falar em falar... ‘fala séééério’
como falamos...
[viu como falamos?] Só não vale ‘cutucar’
hein, mas esse também é mais um jeito carioca de ser. ‘só no cutuque’.
Gostamos de sair de casa, e não precisa ter
planejado nada para isso. Sempre encontramos alguém nas ruas, esquinas, botecos.
Essa gente [a gente] que é carioca, apaixonada e é feliz.
Saímos de havaianas e cabelo molhado seja para comer
biscoito Globo na praia, ou para ir ao shopping. E se o celular tocar e o
pedido ‘passa aqui em casa’ for feito, iremos assim mesmo, sem constrangimento.
Brincamos, rimos e jogamos.
Adoramos jogar. Jogamos ‘purinha’, ‘no bicho’ (que
é contravenção), e sem falar no futebol, que é paixão nacional, além das cariocas é claro. Jogamos futebol no
campo, na praia, em qualquer lugar, até com bolinhas de papel no trabalho,
porque trabalho ‘pra gente’ é sagrado, mesmo tentando fazer dele um
divertimento para aliviar a vida.
Tratamos todos de ‘meu querido’ e temos amigos em qualquer lugar, até na fila de
banco. Bastou um sorriso e certamente saberá toda a vida do sujeito. Isso pode
até ser bom porque com nosso ‘jeitinho’,
ele pode ser influente em algum lugar que precisemos. Depois é só falar com o
zé, lá da fila do banco, que ele ‘quebra
essa’ pra você.
Ser carioca é isso, ter um jeito ‘maneiro’ de falar. As palavras ganham vida e leveza na nossa boca.
Mesmo quando o assunto é sério as piadas não são deixadas de lado. E não vira ‘baderna’ não. A gente se entende e se
respeita.
Palavrão ‘pra gente’ não é xingamento nem falta de
respeito, são expressões. ‘Foda’ que
pode ser escrita com PH = Phoda (se for muito foda) pode ser qualificação indicativa
de dificuldade ("Aquela ‘parada’ é foda!"). Pode ser também qualificação
positiva indicando algo muito bom ("Aquela parada é foda!"). Ou ainda
qualificação que indica algo impressionante ("Aquela parada é Phoda!").
Filha da puta é uma interjeição genérica
de descontentamento. Pode ser usada após qualquer acontecimento desagradável
e/ou inesperado, mas de for juiz de futebol, aí é xingamento mesmo. Porra é
apenas uma interjeição (Porra!).
Em fim Carioquice é a maluquice de ser carioca.
Vinícius de Moraes resume bem ser carioca dizendo:
“... é mais que ter nascido no Rio, é ter
aderido à cidade e só se sentir completamente em casa, em meio à sua adorável
desorganização. Ser carioca é não gostar de levantar cedo, mesmo tendo
obrigatoriamente de fazê-lo; é amar a noite acima de todas as coisas, porque s
noite induz ao bate-papo ágil e descontínuo; é trabalhar com um ar de ócio, com
um olho no ofício e outro no telefone, de onde sempre pode surgir um programa;
é ter como único programa o não tê-lo; é estar mais feliz de caixa baixa do que
alta; é dar mais importância ao amor que ao dinheiro. Ser carioca é ser Di
Cavalcanti.
Então o que me resta dizer é que somos bem humorados, rimos da vida, gozamos das
tragédias e somos felizes por morar no Rio, bonito por natureza, mas que beleza.
Em fevereiro. Tem carnaval. Tenho um Fox e um violão. Sou Flamengo. E tenho um ‘nêgo’ chamado Alexandre.
P.S. Todas as palavras grifadas em azul fazem parte do dicionário Carioquês.
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